As fases de um observador de pássaros até atingir o Nirvana
O amigo observador de aves João Dias estreia a nossa Visão dos Amigos. Em um texto leve e descontraído ele expõe a sua análise das etapas porque passa um birdwatcher.
É bastante comum encontrar nesta vida uma série de atividades que satisfazem a curiosidade do ser humano e, com isso, ele começa a desenvolver um interesse crescente, quase obsessivo, e a pratica sempre que encontra fissuras ou aberturas em sua rotina diária, nem sempre tão prazerosa.
Sabemos que muitas pessoas são apaixonadas por aquilo que fazem durante as quarenta e quatro horas semanais ou mais do horário comercial, mas não é sobre esta atividade que estou falando. Falo da atividade escolhida para preencher a lacuna existente entre a obrigação do trabalho cotidiano remunerado e a redenção trazida pelo conhecimento desinteressado sobre determinada atividade. Falo daquilo que se tornará um “hobby”. Uma destas atividades que tem um grande crescimento atual, e que se beneficiou muito da tecnologia da fotografia digital e da eletrônica é a observação de aves. Ela começa com uma pergunta simples que ocorre comumente logo após visualizarmos uma bela ave. “Que passarinho era aquele…” é sempre o início de tudo e, para muitos, nunca mais termina.
A observação de aves atinge uma ampla variedade de seres humanos de ambos os sexos, desde jovens com pouco mais de sete anos até senhores que estão em plena “melhor idade” da vida, após sua premiada aposentadoria. Também tem amplitude para atingir todas as classes sociais, bem como todo e qualquer nível de conhecimento do ser humano, desde os leigos, passando pelos neófitos e atingindo até ornitólogos renomados.
Toda esta gama de indivíduos depara-se invariavelmente com as várias fases que a observação de aves apresenta. Fases estas que demonstram em que estágio está o conhecimento do indivíduo sobre o assunto e até mesmo como é seu comportamento social em relação aos demais colegas que praticam o mesmo hobby.
Para tanto foi necessário criar uma classificação totalmente pessoal e completamente alheia a qualquer visão científica sobre o assunto. Ela é baseada apenas pelo olhar crítico sobre o comportamento dos vários observadores de aves que conheço e não tem qualquer intuito de tornar-se uma regra. Vejo claramente o desenvolvimento do observador de aves como tendo sete divisões distintas que apresento abaixo:
1) Descoberta e encantamento:
É nessa fase, independente da idade do indivíduo, que a semente do conhecimento é fertilizada. É a mais bela de todas as fases. É nessa fase que o caráter lúdico da observação de aves nos atinge. É aqui e agora que o observador de aves descobre que a natureza é incrível, que tudo na natureza é perfeito, que todas as aves possuem sua beleza particular e mesmo que a aparente feiura aos nossos olhos pode ser uma vantagem evolutiva. Então, click! Descobrimos que a Teoria da Evolução das Espécies escrita por Charles Darwin é uma teoria fantástica! Descobre-se que é possível caçar sem matar, que é possível conseguir um troféu sem retirar nada da natureza e de ninguém. É neste momento que o observador de aves descobre que pode obter beleza sem uma gaiola, sem privação da liberdade da ave.
O aguçado instinto primitivo da caça para a obtenção de alimento e da cobiça pela riqueza parece ser passível de domesticação e controle. Isto seduz tanto, que começamos a achar que encontramos a razão da nossa vida em um único hobby e nos atiramos a ele com toda a intensidade que dispomos. Nessa fase, cometemos muitos erros de identificação das aves, mas são todos erros bons, edificadores. São os erros que cometemos nesta fase que estão moldando os olhos e o cérebro do futuro “taxonomista”, inerente a cada ser humano. São erros que direcionam o conhecimento aos futuros acertos.
2) Registro e coleção:
Como nada é perfeito, é nesta fase que começa a deterioração da nossa atividade lúdica. Parece cedo demais, mas é aqui que deixamos nosso instinto predatório da competição aflorar intensamente. Começamos a competir contra tudo e contra todos, passando por cima de questões éticas e fazemos coisas impensadas até então. Passamos a querer ter os registros de todas as espécies possíveis, de planejar as viagens para os lugares improváveis unicamente no intuito de ter mais registros que todos os demais colegas. Queremos recordes sobre recordes. Nesta fase ainda não estamos preocupados com a qualidade, apenas com a quantidade. É nesta fase que começamos a não medir nossos impulsos e isto nos leva a fazer coisas impensadas para a obtenção de um novo registro ornitológico. Ainda desconhecemos as técnicas da observação de aves e de respeito aos seres vivos e utilizamos estas técnicas de forma errada e danosa tanto para a vida animal quanto para o relacionamento interpessoal. Passamos por cima de regras e do bom senso e até esquecemos que as aves são seres vivos e não objetos de uma coleção na minha galeria de fotos. Muitos observadores de aves jamais conseguem ultrapassar esta difícil fase.
3) Fotografia e tecnologia:
Bom, chegamos à fase mais dispendiosa de nossa jornada pelas fases da observação de aves. Dispendiosa no sentido financeiro já que gastamos pequenas fortunas com equipamento, seja ele fotográfico, sonoro, computacional ou mesmo com a indumentária que utilizamos para praticar a fotografia de natureza. Se na fase anterior a qualidade fotográfica não era importante, agora ela atinge a importância necessária.
Todos nós sabemos ser possível obter boas fotografias de aves com equipamentos primitivos, mas estamos sempre com os olhos fixos no equipamento mais avançado existente no mercado. Nunca estamos contentes com o equipamento que temos disponível, e é comum culpá-lo pela baixa qualidade das nossas fotos. Mas sequer fazemos uma análise criteriosa das diversas variáveis que envolvem uma boa fotografia de natureza. Vale a pena ressaltar aqui que tenho visto muitas fotos ruins com equipamentos de alta qualidade, o que só evidencia que o olho do fotógrafo, o estudo da luminosidade, o conhecimento sobre o comportamento da espécie a ser fotografada, dentre outros, são fatores tão importantes para uma boa fotografia quanto à condição do seu equipamento fotográfico.
É nesta fase que descobrimos a estética, o enquadramento e a composição da imagem fotográfica, o milagre que os softwares de pós-processamento de imagens podem fazer atuando sobre fotos não tão boas. Como você pode ver, no final desta fase estamos rodeados de todo tipo de equipamento e fazendo todo o possível para aproximar nossas fotos daquilo que nossos olhos registraram naquele breve instante em que nos deparamos com aquela pequena ave.
4) Vocalização e bioacústica:
Sabemos que o local que todo observador de aves quer estar é onde existe diversidade de aves. É lá que as encontramos para fotografá-las. Nem sempre lembramos que existem muitos obstáculos que nos impedem de visualizar as aves em seu ambiente natural.
Aves são, em sua maioria, presas de outros animais e por esse e outros motivos, possuem suas formas, cores e comportamento submetidos há milênios à evolução natural das espécies. E durante este tempo adquiriram características especiais como mimetismo, camuflagem e comportamento furtivo que dificultam a tarefa de encontrá-las em seu ambiente. Isto tudo frustra o observador de aves, impedindo a obtenção do objeto de seu interesse, a foto da ave. Então, que no meio do silêncio, um assovio atrai a atenção e descobrimos que aves são animais curiosos e mais, que são atraídos por sons distintos em seu ambiente. Neste momento começamos a utilizar técnicas primitivas dos caçadores: o pio. Começamos a imitar as aves para atraí-las para o nosso objetivo de fotografá-las.
Já havíamos descoberto a tecnologia da fotografia na etapa anterior, agora descobrimos a vocalização das aves, seu comportamento territorialista, a tecnologia acústica dos gravadores e reprodutores de sons e a técnica do “playback”. Pronto, mais uma descoberta, descobrimos a bioacústica tão utilizada por Jacques Vielliard.
A utilização do “playback” é de benefício mais que duvidoso. Ele é sim, no meu entender danoso, pois causa nas aves uma série de distúrbios como estresse, irritação, agressividade e medo. Existem observadores de aves que estão utilizando a vocalização de aves predadoras como Accipitrideos ou stringideos com a intenção de assustar pequenas aves e com isto forçar sua saída do interior dos arbustos para conseguir apenas uma “boa” foto. Isto é um crime! A utilização de “playback” de forma incorreta causa estresse temporário e incapacitante nas aves, tornando-a vulnerável em seu ambiente, podendo fazê-la abandonar seu território ou seu ninho. Esta técnica somente deve ser utilizada em casos especiais e por pessoas com conhecimento científico e jamais de forma abusiva. Infelizmente esta técnica está sendo disseminada aos observadores de aves por quase todos os guias e grande parte destes observadores de aves são despreparados e não possuem conhecimento para utilização desta técnica.
5) Conhecimento e ornitologia:
Chegamos à fase mais tranquila da atividade de um observador de aves. Agora a maioria das identificações das aves é fácil, a especialização se apresenta como uma nova atração pois a maioria das aves já são conhecidas. O observador de aves é bastante requisitado para auxílio por outros colegas menos experientes. Esta fase é a que traz não só prazer ao ego do observador de aves, mas também maior desgaste ao seu relacionamento interpessoal. Aqui é que cometemos o maior erro nesta trajetória e as armadilhas se apresentam. O observador de aves nesta fase considera que a ornitologia é uma ciência dominada e considera que já nasceu com ela em seu sangue. Sabe-se tudo, se tem certeza de tudo e mais que depressa e impensadamente, reage agressivamente a toda e qualquer observação ou conceito não convergente aos dele. É também comum cometer o erro de considerar que poucas pessoas podem agregar novos conhecimentos aos que já foram acumulados. Agora as discussões sobre ornitologia vão ficar frequentes e toda a gentileza e altruísmo existente até então se esvairão. O observador de aves então apresenta claros sintomas de impaciência, autoritarismo, grosseria e arrogância.
Mesmo que você não acredite, todos nós mais cedo ou mais tarde passaremos por esta fase e é muito difícil controlá-la. Alguns, com sorte, conseguem sobrepujar estes sentimentos sem demonstração pública. Já outros, apresentam uma grande dificuldade neste intento, mas àqueles que conseguem controlar este comportamento, está reservado o reconhecimento dos colegas, a igualdade entre os praticantes da atividade e o grande prazer do conhecimento científico que se aprofunda e amadurece com o tempo.
6) Contemplação e contentamento:
Já conhecemos as técnicas, já temos o conhecimento científico. Chegamos então à fase onde o observador de aves assume a atitude daqueles que ficam encantados pelo sentimento estético da obra natural. Não há mais necessidade de confrontos e nos tornamos espectadores da complexa obra da vida. Não existem mais preocupações racionais de seguir os ditames rígidos das estruturas da técnica fotográfica ou da ornitologia, agora o mais importante para o observador de aves é a simples admiração pelas aves, pelo seu canto e pelo seu comportamento geral na natureza. Coisas simples que anteriormente não eram motivo de interesse passam a atrair a nossa atenção. Ficamos por exemplo entretidos por longos períodos examinando a estrutura de construção de um ninho em forma taça. Reparamos na forma do ninho, no material utilizado na sua construção, no material utilizado na forração do ninho onde deverão ser alojados os filhotes. Colocamos atenção metódica na frequência e no tempo de construção do ninho, cotamos os ovos, o tempo de duração da incubação, no trato da prole. É interessante saber qual o filhote é mais forte ou qual é o mais guloso e ficamos contentes com o sucesso dos pais na criação de seus filhotes.
Esta é a fase onde os detalhes são extremamente importantes e cada um deles é tratado como uma pequena peça do grande quebra-cabeça que é a natureza. Agora o binóculo é mais utilizado que a máquina fotográfica. Não há a necessidade de registrar nada em memória digital, basta o registro cerebral. O contentamento agora está no ato de observar e não mais em registrar, colecionar, catalogar. Nesta fase, a maioria dos observadores de aves ainda pratica a atividade em grupo, compartilhando conhecimento, mostrando uns aos outros, aquilo que encontraram ou aquele comportamento especial que visualizaram em determinada espécie de ave, mas isto vai mudar e vamos ficar a cada dia, um pouco menos gregários.
7) Nirvana: Para os hindus, “Estado puro de paz e plenitude alcançado através da meditação”.
Este é o cume da escalada que se propôs o observador amador de aves. É a fase do desapego, da falta de preocupação e da maior integração com a natureza. Não é mais importante o equipamento potente, nem a companhia dos experientes guias nem de companheiros nas passarinhadas, tão pouco é útil o conhecimento acumulado durante anos de estudo de ornitologia. O relógio não é mais importante para registrar o tempo. Agora quem determina o tempo é a luz natural, enquanto ela estiver presente tudo estará bem. Não exageramos nas atividades, temos pleno controle das nossas ações quando estamos observando as aves. A satisfação na observação de aves tornou-se uma atividade solitária e despida de conceitos pré-estabelecidos. Ninguém além de você precisa saber as espécies que observou ou os comportamentos que acompanhou e, consequentemente não é necessário provar nada a ninguém.
Para quem atingiu este estágio, o prazer supremo é estar imerso na natureza e todos os equipamentos necessários são apenas aqueles com os quais a generosa natureza foi capaz de provê-lo: os cinco sentidos do ser humano. Agora não são apenas os pássaros os objetos de interesse, o interesse é a biodiversidade e a interação com as demais formas de vida que o rodeiam. Basta estar só no interior da mata, ouvindo, vendo e sentindo cada som, cada movimento, cada cor e sentir tudo aquilo que cada um dos seus sentidos consegue absorver. É fácil reconhecer um observador de aves que atingiu o “NIRVANA”. Basta atenção para o tamanho do sorriso que ele apresenta após uma longa jornada de observação de aves.
JOÃO DIAS MOREIRA
Observador de aves em São José do Alegre, colabora com entusiasmo na ajuda para identificação das mídias no WikiAves e nas páginas científicas do site.
E-mail para contato: joao.dias.moreira@bol.com.br
Amei, um texto criativo e esclarecedor, poderia muito bem ser indicativo de sanidade de birdies…kkkk parabéns, muito bom!!
Amei, um texto criativo e esclarecedor, poderia muito bem ser indicativo de sanidade de birdies…kkkk parabéns, muito bom!!
Obrigado Martha pelo seu comentário. Aproveite e continue acompanhando o nosso blogue. Todo mês teremos uma novidade sobre as belzeas naturais de Curvelo e região.
Obrigado. Desculpe pela demora em respondê-lo, estamos trabalhando em novidades.
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