Nannochordeiles pusillus nas pedras curvelanas
Aquele era ambiente de pedras em todos os tamanhos e formas, suas cores puxando sempre paras as do chão, uns marrons pardacentos e as nuances de tons deles mais ou menos derivadas, intercalo atapetado de seixos na travessia. Por vez, o brilho de um cristal. Quase um só trem, é verdade, coisa que o observador não dava lá as importâncias tantas – ponto de passagem.
O que deveras lhe encantava era o brilho dos beija flores, as coloridas aves de entre um rincão e outro, o assobiamento sem eira do chama cachorro, os tresloucados melodismos da bandoleta, o olhar penetrante e ameaçador do rupornis-pega-pinto, a insistência do gaturamo em dizer que tudo acabou. Era o que procurava. Mas no cerrado o que não se espera se encontra, o que não é pode vir a ser, e as cores bobas desimportantes de suas tantas formas de palidez e inércia se revelam vivas, quase álacres se não a sua natural fundamentação propositalmente desbotada. E uma pedra pode de repente voar, tomando o observador incauto dos mais tremendos sustos de descer em corredeira pela medula um aluvião. Sobressaltos! E lá na frente a pedra se recompõe… O que será? Retomado da interna balburdia que lhe causara o imprevisto levantar voo do seixo que se pôs adiante, o observador fixa o olhar nele para não perdê-lo. Aproximando-se a passos lentos percebe um suave movimento do bicho quase letárgico. Mirou a teleobjetiva e o foco ajustado permitiu que vislumbrasse um bico, olhos e contornos de asas. Uma ave! Um bacurau – ou chupa-cabra, como dizem os europeus. Aproximou-se cada vez mais a ponto de quase tocar no pequeno camuflador. Uma incrível preciosidade alada que se vangloria da ímpar capacidade de, em um ato, se transformar, virar cascalho, uma conformação entre todos os seixos, um deles – a pedra que voa!
Vamos saber um pouco mais sobre o pequeno bacurau que gosta de se passar por pedra!
Bacuraus, os chupa-cabras de asas
Classificação Científica | |
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Reino:
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Animalia
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Filo:
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Chordata
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Classe:
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Aves
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Ordem:
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Caprimulgiformes
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Família:
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Caprimulgidae
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Espécie:
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N. pusillus
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Nome Científico:
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Nannochordeiles pusillus
(Gould, 1861) |
O mais empolgante no ser humano é a sua necessidade latente de se certificar de que o mundo à sua volta está sob seu domínio e prontamente explicado, mesmo que nas artimanhas do deslindar venha a conferir metafísica sofismal ao que não entende. Até que surjam novos contornos melindrando o que os sábios de outrora tinham como causa pétrea, salpicando de gracejos o que antes era cátedra. Não se pode julgar o homem primevo por não entender a circunferência terrestre, o nascer do sol e a inundação dos temporais. Assim também com o conhecimento sobre as aves Caprimulgiformes. O campesino europeu – e mesmo os sábios da estatura de Plínio, o Velho – trataram dos bacuraus com a sagacidade que lhes conferia o empirismo usual da época. Ao observar os hábitos do noitibó-da-europa, que sempre ficava mais ativo próximo ao rebanho de cabras no crepúsculo e ao longo da noite, associaram-no às doenças que acometiam os caprinos. As pessoas acreditavam que a ave sugava o leite das fêmeas e essa era a origem dos problemas. Mal sabiam eles que os noitibós estavam mesmo era prestando um serviço gratuito alimentando-se dos insetos que atazanavam a pobre malhada. Verdadeiro ou falso, o fato é que Linnaeus, sempre ele, se aproveitou desse contexto para denominar a espécie de Caprimulgus europaeus que, etimologicamente falando quer dizer Capri = cabra; mulgus = (do Latim, mulgere) tirar leite; europaeus = europeu ou da Europa. Utilizando a licença que a língua nos permite podemos dizer que o noitibó europeu é o “chupa cabra da Europa”. Anos mais tarde, Nicholas Aylward Vigors cunhou o termo Caprimulgidae para designar a família de aves similares ao Caprimulgus europaeus . No Brasil não ocorrem espécies do gênero Caprimulgus.
Acima: Exemplo de aves da ordem Caprimulgiforme
As aves da ordem Caprimulgiforme têm como característica básica o pequeno bico – que esconde a enorme boca que se abre em pleno voo para capturar as suas presas – cabeça quadrangular, olhos grandes e com extrema adaptação ao ambiente pouco iluminado. Os pés são pequenos e a cauda alongada, variando conforme a espécie, podendo chegar a 55 cm no bacurau-tesoura-gigante – Hydropsalis forcipata (Nitzsch, 1840). As asas são alongadas, geralmente grandes, evoluídas para proporcionar voos ligeiros e silenciosos, adaptação que surpreende as presas quando a ave está à procura de alimento. Essa característica ajuda também a fugir de possíveis predadores, embora prefiram se manter inertes já que a plumagem geral das espécies faz com que se confundam com o habitat, condição denominada de padrão críptico de plumagem. O alimento básico das espécies que compõem a ordem são os insetos, ou seja, trata-se de um táxon onde quase todos os seus membros são aves insetívoras. A exceção é o guácharo – Steatornis caripensis (Humboldt, 1817), espécie frugívora que ocorre na Amazônia tendo ocorrência no Brasil na cidade de Manaus. Exclusivamente noturnas, podendo algumas espécies se mostrar mais ativas no crepúsculo. São exímios camufladores e a maioria das espécies se utilizam da homocromia – coloração que se assemelha ao ambiente em que habita – para despistar seus predadores.
Conhecendo o bacurauzinho
Chordeiles pusilus é uma das menores espécies dos chamados bacuraus, medindo no máximo vinte centímetros de comprimento. A sua plumagem segue um padrão marrom pardacento com algumas manchas negras. As asas são longa e finas, apresentando uma coloração branco acinzentada em sua parte inferior; os pés são curtos e geralmente perceptíveis apenas quando a ave alça voo. Os tarsos são desprovidos de penas. O macho adulto tem a coroa e a nunca amarronzados e a fêmea as pontas das penas em tons mais claros e as rêmiges primárias são ligeiramente menores. Alimenta-se de insetos que captura em voo.
São reconhecidas as subespécies Chordeiles pusillus pusillus (Gould, 1861), Chordeiles pusillus novaesi (Dickerman, 1988), Chordeiles pusillus esmeraldae (Zimmer & Phelps, 1947), Chordeiles pusillus septentrionalis (Hellmayr, 1908), Chordeiles pusillus xerophilus (Dickerman, 1988) e Chordeiles pusillus novaesi (Dickerman, 1988).
A ave tem total confiança em sua estratégia de camuflagem e permite grande aproximação do observador. Ela se utiliza da camuflagem do tipo homocromia, onde o animal confunde a sua plumagem com o meio ambiente em que vive, tornando-se assim quase imperceptível para os eventuais perigos como a presença de predadores. Colabora com a fantástica camuflagem o fato de a ave se manter praticamente imóvel e se mostrar incomodada apenas quando transposto o seu espaço limite de segurança. Foi observado que, ao se sentir ameaçado alça voo quase sempre defecando e emitindo um ligeiro chamado como se estivesse alertando aos demais indivíduos que porventura estiverem na área que existe uma situação de perigo.
Acima: Registro do habitat em que o bacurauzinho foi encontrado em Curvelo.
O bacurauzinho não se encontra em ameaça ou perigo de extinção, situação que pode se reverter devido a intensa destruição de seu habitat. A espécie, pelas suas características e hábitos, mostra-se extremamente sensível a alterações antrópicas em seu ambiente. Em Curvelo foi verificado um forte declínio na população da espécie na área hoje compreendida pelo autódromo Circuito dos Cristais. Análises em campo determinaram que uma população da espécie desapareceu da região, ao mesmo tempo em que se verificou um aumento de indivíduos em zonas mais a sudeste do município, sentido Comunidade de Saco Novo. Apenas um pequeno grupo de seis indivíduos se manteve em uma área particular a oeste do autódromo e não foi possível determinar se eles conservavam hábitos reprodutivos. A tendência é que o bacurauzinho desapareça em definitivo desse território, já que uma imensa área em torno do empreendimento foi loteada e virará um condomínio de luxo. Uma extensão do terreno foi preservada para se tornar uma reserva ambiental, mas não apresenta nos trechos analisados as condicionantes de sobrevivência para a espécie.
A sua nomenclatura binária vem da junção dos termos grego khoreia – dança, dançar com música; e deilë – crepúsculo, fim de tarde, à noite; e do latim pusillus – muito pequeno, pequenino. Podemos considerar assim que o seu nome científico, em livre transliteração, que dizer “Pequenino dançarino da noite”. (Fonte: Wikiaves). As características que respaldam o seu nome científico estão no seu tamanho corporal e no hábito que tem de voar de forma que, para o observador, lembra uma coreografia, fazendo belas acrobacias no ar, ora em grandes velocidades ora quase planando. Esse balé aéreo é executado no começo do entardecer até o crepúsculo.
Em 2016 o Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos atualizou os dados ornitológicos das aves brasileiras, dados que foram publicados em 2017. Dessa forma, o nosso bacurauzinho, cujo nome científico era Chordeiles pusillus, recebeu um “nanno” à frente do nome do gênero, ficando assim: Nannochordeiles pusillus, ratificando ainda mais a sua característica de “pequeno”.
A ave em seu habitat curvelano
Em Curvelo o bacurauzinho foi encontrado em terrenos geralmente planos e abertos, com grande volume de pedras soltas, tipo cascalho com incidência de quartzitos subédricos e rochas metamórficas que aparentam ter surgido pelo intemperismo do solo conforme ações naturais como pluviosidade e eólica; árvores esparsas e relativamente baixas, não atingido mais que 3 metros as mais altas – essas árvores são encontradas em outras formas de cerrado e podem assumir alturas maiores. Esses terrenos estão dispostos como ligeiros platôs entre domínios de cerrado campo sujo em declive – estes sempre levando aos chamados grotões, em que a vegetação se mostra mais densa e contínua entre toda a sua extensão. Ocorrem nesses terrenos pequenos arbustos e gramíneas – formando touceiras ou faixas descontínuas. Foram identificadas nesse contexto fitofisiológico diversas espécies de Poáceas como Aristida sp., Ctenium cirrhosum (Nees) Kunth, Trachyppogon sp dentre outras; Fabáceas como Andira humilis (Mart. ex Benth.),Vatairea macrocarpa (Benth.) Ducke, Aeschynomene paucifolia (Vogel), Stryphnodendron adstringens (Mart.), Crotalaria unifoliolata (Benth.), Galactia benthamiana (M.Micheli), Chamaecrista cathartica (Mart.), Bowdichia virgilioides (Kunth 1823); Bignoniaceas como Anemopaegma arvense (Vell.) Stellfeld ex de Souza, Fridericia platyphylla (Cham.) L.G. Lohmann; a incomum Crumenaria choretroides (Mart. ex Reissek.) da família Rhamnaceae, Solanaceas como Solanum subumbellatum (Vell.) e Solanum lycocarpum (L.), Verbenaceas como Stachytarpheta reticulata (Schauer ex Mart.), Lippia lupulina (Schauer) além de diversas espécies de outras famílias botânicas como Asteraceas. Nesse ambiente, onde predominam os campos abertos, Chordeilies pusillus, pela sua plumagem mesclada por diversos tons de marrom e pardo se confunde com as pedras e com a vegetação rasteira.
Bacurauzinho por Antonio Augusto Nery
Bacurauzinho por Marcio Nery
Saiba mais: Wikiaves, Blog do Prof. Djalma Santos – Educação, Biologia e afins, Alvaro Negret – Fluxos migratórios na avifauna da Reserva Ecológica do IBGE, Brasília, DF., Brasil – Revista Brasileira de Zoologia, Nomes Científicos Inusitados,
Muito legal!
Armando T, obrigado. Fique de olho que todo mês tem novidade em nosso blogue