Hydropsalis parvula – uma família em Curvelo
“Digo ao senhor: a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu mais pensei. No seguinte: como é que curiango canta.” Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa
Os curiangos ou bacuraus são aves que despertam histórias e fazem parte da cultura popular de diversas partes do Brasil. Aves que fascinam, misteriosas criaturas da noite, donas de um repertório vocal que mexe com o imaginário das pessoas, estando à frente de muitas querelas de mau agouro. Pela feição corporal não são fáceis de ver, passando despercebidas nos ambientes em que ocorrem. Ainda existe incompreensão devido a todo esse jogo de aspecto, o parentesco que essas aves gostam de manter com o ludibrioso. Quando avistados, são muitas vezes rechaçados por quem os encontra.
Neste artigo vamos conhecer o bacurau-chintã (Higropsalis parvula – Gould, 1837), um dos mais comuns representantes da família Caprimulgidae que enche os cerrados, matas secas e campos com o seu canto misterioso quando a boca da noite avança engolindo o dia com as incertezas que o seu escuro manto oculta, encobrindo os seres que buscam no zênite de sua caligem não mais que comida, guarita e discrição.
Conhecendo o bacurau-chintã ou bacurau-pequeno
Classificação Científica | |
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Reino:
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Animalia
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Filo:
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Chordata
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Classe:
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Aves
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Ordem:
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Caprimulgiformes
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Família:
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Caprimulgidae
(Vigors, 1825) |
Espécie:
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H. parvula
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Nome científico:
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Hydropsalis parvula
(Gould, 1837) |
Hydropsalis parvula é uma bela ave notívaga que mede aproximadamente vinte centímetros. O macho apresenta a garganta e a ponta da cauda brancas. Nas asas uma faixa na mesma coloração segue como referência para distingui-lo da fêmea, que também não apresenta a mancha branca na cauda e a garganta é de uma tonalidade amarelada. Pela sua coloração passa despercebido entre as folhagens secas que caem no chão. É um bacurau que pousa regularmente em poleiros a meia altura em relação ao solo. Foi observado que tem o hábito de frequentar os mesmo poleiros. Para se alimentar dos pequenos insetos base da sua dieta utiliza o recurso de senta e espera em manobras de “investir-atingir” (em que no ar a ave avança sobre a sua presa e a atinge de modo certeiro) e “alcançar e respingar” (manobras partindo diretamente do solo e abatendo a presa a uma altura que varia de curtas a médias distâncias sempre voltando para o mesmo ponto ou para um ponto próximo).
Entre os Caprimulgiformes que ocorrem em Curvelo o bacurau chintã é o mais notável nos meses de setembro e outubro, período em que encontra-se extremamente ativo devido aos atos de acasalamento, postura e choca dos ovos, ocasião em que torna-se comumente ouvir a sua vocalização à partir dos primeiras horas do anoitecer. Após esse período vocaliza cada vez menos, sinal de que os filhotes já saíram dos ovos e os adultos estão em plena atividade de cuidado parental.
A espécie executa movimentos migratórios, motivo pelo qual após o período de acasalamento, postura e cuidado com os filhotes não é mais visto nos locais onde nessa época é frequentemente observado e ouvido. Registros foram feitos em todo o Brasil, sendo a base de dados do Wikiaves um importante instrumento de verificação dos períodos em cada região em que Hydropsalis parvula é avistado, servindo também como base de análise para os movimentos locais que a espécie realiza.
Em Curvelo os registros constantes são majoritariamente no mês de outubro, sendo exceção um registro do usuário Diogo César feito no dia 19/01/2013, outro do usuário Douglas Alencar Gass, feito no dia 20/09/2015 e outro do usuário Geraldo M. Pereira registrado no dia 14/11/2015.
A espécie tem o ornitólogo e naturalista inglês John Gould como autoridade descritiva. Gould notabilizou-se, entre outras proezas e descobertas no campo da ciência natural, por ter alertado Charles Darwin de que as aves que ele havia coletado em Galápagos se tratavam na verdade de espécies com características distintas entre si e mesmo novos táxons a ser reconhecidos pela ciência. Para designar as espécies por John Gould descritas é utilizada a abreviatura padrão Gould – torna-se importante salientar que o conquiologista estadunidense Augustus Addison Gould é também notado por esta abreviatura nas espécies por ele descritas. Como o objeto de estudo dos dois autores é bem distinto logo a confusão se desfaz ao vasculhar a história de cada um.
A sua nomenclatura binária vem da junção dos termos grego hydro, água; e psalis, tesoura; e do latim parvula, parvulus, diminutivo de parvus, pequeno, menor. Em livre transliteração quer dizer “tesoura d’água muito pequena” (Fonte: Wikiaves).
Hydropsalis parvula (Gould, 1837) se encontra na lista da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais com o status de Pouco Preocupante, o que quer dizer que a espécie não se encontra em risco ou ameaça de extinção. A conservação dos habitats em que ocorre deve ser uma observação indispensável e constante para que o status não passe a ser desfavorável para a espécie nas próximas atualizações e revisões das condições dos seres vivos disponibilizadas pelos órgãos ambientais.
Cuidado parental
Não espere de um bacurau o refino na construção do seu ninho como vemos em outras espécies de aves, a evolução fez com que eles se dedicassem mais na proteção dos ovos e filhotes que no desgaste da elaboração do local de postura.
Ovos de Hydropsalis parvula (Gould, 1837). Ninhos como os deste bacurau são chamados de ninhos elementares. |
Nesse contexto, é importante salientar que os Caprimulgiformes, assim como qualquer outro ser vivo, não são menos ou mais evoluídos, a natureza dotou cada organismo com as faculdades necessárias e centrais para a manutenção da sua existência. Assim fica fácil compreender que um animal que utiliza da sua aparência para passar despercebido no ambiente não iria construir um ninho de maneira a destacá-lo na paisagem. Se ele próprio procura ser parte do contexto o seu ninho e seus filhotes assim também devem ser. O local escolhido para a postura dos ovos portanto é geralmente um pequeno espaço limpo no meio das folhagens secas da serrapilheira, preferencialmente próximo a árvores que no mês de outubro já estão se vestindo de verde e as pancadas de chuva que podem lavar os arredores ainda não tomaram forma. Locais de postura com essa característica são denominados ninhos elementares e são bastante comuns em diversas espécies de aves noturnas e geralmente difíceis de ser encontrados justamente pela sua característica elementar.
O bacurau chintã coloca dois ovos de coloração creme salpicados de pequenas manchinhas amarronzadas. O ninho que *observamos foi localizado no dia 17/10/2016 e já contava com os ovos postos. O local escolhido pelas aves para a postura e cuidado parental foi uma área de transição entre cerrado campo limpo e cerradão, mais precisamente na borda desta fitofisionomia. Para não causar stress nos animais e manter o ritmo de interação dos pais com os filhotes bem como a evolução do crescimento deles em harmonia optamos por nos mantermos nas proximidades do ninho por, no máximo, cinco a dez minutos e por visitar o local a cada dois ou três dias sempre no horário do crepúsculo. As visitas, porém, se deram em datas mais espaçadas devido a diversas condicionantes como as condições climáticas que se mostraram desfavoráveis embora não tenha chovido e a nossa própria segurança, já que o local da nidificação ficava próximo de uma área urbana com exponencial índice de atos infracionais. Em outras ocasiões observamos a uma distância maior para que possíveis movimentações e interações pudessem ser documentadas. Não foi tocado play back próximo ao ninho.
Foi observado que o casal se revesa na choca dos ovos, sendo mais frequente a presença da fêmea. Contudo, após a eclosão – observamos pela primeira vez os filhotes no dia 25/10/2016 – o macho era quem se incumbia de cuidar deles com maior frequência. Os dois filhotes apresentavam ligeira diferença de tamanho, exibindo coloração pálida, lembrando folha seca, o que colabora para o fato de passarem praticamente imperceptíveis no ambiente. Desde a primeira observação eles demonstravam o mesmo comportamento dos adultos, permanecendo imóveis mesmo quando ficávamos bem próximos deles. Em uma ocasião eles se locomoveram do local onde estavam – mais limpo e portanto deixando-os mais expostos – para um ponto entre as folhas secas da serrapilheira. O adulto que estava aos cuidados das crias sempre que percebia a nossa aproximação voava para um ponto afastado e agia como se estivesse ferido, emitindo um som ruidoso com o bico entreaberto e agitando freneticamente as asas e o rabo. Esse comportamento tem a intenção de afastar as possíveis ameaças ou predadores das imediações do ninho, fazendo com que os mesmos, curiosos com a ação do adulto, sigam em sua direção e dessa forma mantendo a integridade da área de nidificação e dos filhotes. Em uma das ocasiões fomos em direção ao macho que, a cada aproximação nossa, se afastava cada vez mais demonstrando o mesmo comportamento ao pousar adiante. Quando percebeu que já estávamos a uma distância segura do ninho voou para uma direção diversa.
Em torno de 45 minutos depois, após passarmos novamente pelo local pudemos notar que a fêmea estava no ninho protegendo os filhotes – ou será que ela assumiu o posto tão logo o macho nos afastou? Não podemos confirmar este fato, mas podemos afirmar que ambos se mantêm nas imediações do ninho, sempre um exercendo efetivamente o cuidado parental enquanto o outro possivelmente encontra-se em vigilância. Foi notado que os filhotes eram orientados pelos adultos, principalmente pelo macho, a se deslocarem de um local a outro na área de nidificação, esse comportamento foi se tornando cada vez mais regular conforme eles cresciam, havendo um deslocamento de aproximadamente dois metros para qualquer lado em relação ao ponto em que os ovos tinham sido colocados. Os movimentos eram sempre direcionados aos pontos de maior concentração de serrapilheira, o que sugere um comportamento de aprendizado por parte dos filhotes em relação às técnicas de camuflagem. Pudemos registrar o macho emitindo um som como um ronco baixo que serviu de norte para os filhotes que, tão logo ouviram a emissão, se deslocaram em sua direção e se esconderam debaixo de suas asas.
Os filhotes foram avistados pela última vez no dia 11/11/2016 ainda não completamente emplumados, o que nos levou a levantar a hipótese de que foram feitos deslocamento maiores fora da área de nidificação mas ainda se encontravam dependentes dos pais. Como não foram mais avistados decidimos que as visitas ao local se devam por encerradas no dia 15/11/2016.
Nota:
* As observações foram feitas com os amigos Antonio Augusto Nery e Maurílio Neto.
Saiba mais: História natural do bacurau-chintã (Hydropsalis parvula): comportamento de forrageamento, migração e caracterização dos poleiros de pouso e vocalização – Thalles Vassão Braga Ribeiro, Wikiaves, Ninhos de espécies ameaçadas, endêmicas e outras de comportamento reprodutivo pouco conhecido – Pedro Cerqueira Lima; Rolf Grantsau; Rita de Cássia Ferreira da Rocha Lima; Thyers Novaes de Cerqueira Lima Neto & Luiz Eduardo Souza Silva, As aves e os ambientes em que elas ocorrem em uma reserva particular no Cariri paraibano, nordeste do Brasil – Helder Farias Pereira de Araujo, Arnaldo Honorato Vieira-Filho, Tarsila Almeida Cavalcanti, Maria Regina de Vasconcelos Barbosa, The feather mites of nightjars (Aves: Caprimulgidae), with descriptions of two new species from Brazil (Acari: Xolalgidae, Gabuciniidae) – Fabio Akashi Hernandes, Morfometria e anatomia de Arcideos (Mollusca, Bivalvia) da costa Norte- Nordeste do Brasil – Valesca Paula Rocha, Wikipedia – Lista de abreviaturas de nomes de zoólogos.
“Só esses pássaros de pena mole, gerados da noite – tantos bacuraus insensatos: o sebastião que chamava a fêmea, com grandes risadas, pedindo tabaco-bom.” Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa