Phylloscartes roquettei (Snethlage, 1928), uma raridade em Curvelo
“o cara-dourada, Phylloscartes roquettei, é uma espécie considerada criticamente ameaçada de extinção (IUCN, 2007) que permaneceu por mais de 50 anos conhecida apenas de sua localidade tipo em Minas Gerais (Brejo Januária), onde foi coletado em 1926 (Willis e Oniki, 1991).”
* Primeiros registros de Phylloscartes roquettei Snethlage, 1928, na Bahia, nordeste do Brasil
A descoberta
Primeiro registro de P. roquettei feito em Curvelo. Foto: Maurílio Neto |
A descoberta ocorreu devido a um erro cometido por Maurílio Neto e eu algumas semanas antes ao guiarmos os amigos de Santo Antônio do Monte – Paulo Couto, Alysson Silva, Daniel Santos, Wiliam Silveira, Luis Henrique e de Pompéu – Luiz Alberto e Afonso Carlos em busca do urubu-rei na Lapa do Mosquito. Como ocorre com qualquer passarinheiro, que pelo menos uma vez na vida equívoca-se com os caminhos, levando muitas vezes pelo excesso de confiança os seus convidados a estradas diversas àquelas usuais, dando aquele frio na barriga por ter errado um itinerário que para ele tornou-se deveras trivial. Acabou que esse erro se mostrou bastante adequado, já que diversas espécies novas foram encontradas e catalogadas para o município de Curvelo. Aquela matinha entre eucaliptos perto da qual paramos foi uma desforra e um alento enquanto Maurílio me dizia o que havia acontecido por termos errado a estrada para a lapa. Nesse meio tempo parado o amigo de Samonte, Alysson Silva, conseguiu o registro do arapaçu-verde (Sittasomus griseicapillus – Vieillot, 1818) – que ainda hoje é o único para a cidade. Por fim as novidades daquele trecho se esgotaram e seguimos em frente pela estrada até encontrarmos o correto trajeto para aquela que é uma das mais belas descobertas de Peter Lund.
Passado aquele dia nos incomodava o fato de não termos conseguido registrar o arapaçu-verde. O amigo Antonio Augusto Nery, o Augustinho, ao ver quantas novidades havíamos registrado imediatamente entrou em contato e marcamos uma volta àquele local, principalmente por causa da marianinha-amarela. Tínhamos que fotografar, Maurílio e eu aquele danado Sittasomus griseicapillus…
Algo maior, porém, nos esperava. No fim de semana posterior, um domingo cinza pré outonal, saímos bem cedo e a nossa intenção era clara: encontrar as espécies marianinha amarela (Capsiempis flaveola – Lichtenstein, 1823) arapaçu-verde (S. griseicapillus) e o papa-moscas-cinzento (Contopus cinereus – Spix, 1825) para que Augustinho pudesse registrá-las. Para Maurílio e eu era a chance de melhorar nossos registros e mais uma oportunidade de tentar observar o arapaçu. Chegamos ao local dessa vez sem atropelos, logo a marianinha-amarela deu as caras e fizemos alguns bons registros, Augustinho muito feliz por ter conseguido mais esse belo lifer – termo pelo qual os passarinheiros denominam as espécies por eles primeiramente visualizadas ou registradas.
Entramos pelas estradinhas que recortam as matas atentos a todos os sinais. Eu de quando em quando chamando no playback o S. griseicapillus. Maurílio, que tem olho biônico, com uma visão bastante apurada para longas distâncias, visualizou pela primeira vez o nosso pequeno Rhynchocyclidae bem lá no cimo da copa mais alta e densa do lado de um pequeno beija-flor que era naquele momento o nosso foco. No instante que vi a espécie pela lente de sua câmera – e naquele sábado apenas ele conseguiu registrá-lo – já sabia que estávamos diante de algo no mínimo diferente do que era usual encontrarmos em nossas andanças Curvelo afora. Augustinho aventou de ser o bico-chato-amarelo (Tolmomyias flaviventris – Wied, 1831), para mim era piolhinho-do-grotão (Phyllomyias reiseri – Hellmayr, 1905). Maurílio questionava incrédulo o porque de não termos fotografado. Marianinha-amarela – pensei comigo. Fomos embora com a certeza de que tínhamos registrado algo diferente, apenas isso. Chegando em casa mandei mensagem para Maurílio – que só queria saber do Trochilidae que para mim não passava de um Amazilia fimbriata (Gmelin, 1788). “Maurílio, larga esse beija-flor pra lá e foca naquele amarelinho, manda pro Wagner Nogueira e pro Paulo Couto!”. Mas ele insistia naquele pequeno beija-flor… Liguei para Augustinho para falar das minhas suspeitas sobre a pequena ave amarelinha, para mim, naquele momento era piolhinho-do-grotão. Logo o Maurílio retorna com uma mensagem reveladora, algo além de P. reiseri tinha sido descoberto! Paulo Couto havia confirmado: “Na verdade é outra raridade: cara dourada – Phylloscartes roquettei“.
Abaixo: Vocalização do cara-dourada – Phylloscartes roquettei (Snethlage, 1928) gravada em Curvelo pelo amigo Marcio Nery.
* Revista Brasileira de Ornitologia, 17(3-4):217-219 – Sidnei Sampaio dos Santos, Francisco Pedro da Fonseca Neto, José Fernando Pacheco, Ricardo Parrini e Guilherme Alves Serpa.
Phylloscartes roquettei
Classificação Científica | |
---|---|
Reino:
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Animalia
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Filo:
|
Chordata
|
Classe:
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Aves
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Ordem:
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Passeriformes
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Subordem:
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Tyranni
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Parvordem:
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Tyrannida
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Superfamília:
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Tyrannoidea
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Família:
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Rhynchocyclidae
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Subfamília:
|
Pipromorphinae |
Espécie:
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P. roquettei |
Nome Ciêntifico:
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Phylloscartes roquettei Snethlage, 1928 |
“Em cinco ocasiões, emitimos o “playback” do canto para estimular resposta comportamental ou vocal, mas apenas um indivíduo se aproximou, deslocando-se pelas copas e emitindo cantos e chamados por quase dois minutos. Em seguida, ele retornou às atividades de forrageio sem manifestar nenhuma resposta ao “playback”.”
As notas acima são relativas ao período final do verão, coletadas nas primeiras horas da manhã, já no início do outono em uma tarde por cerca de quinze minutos de observação após a aproximação da espécie um indivíduo apenas se limitou a vigiar o playback mas sem demonstrar maior agitação e sequer vocalizou. Isso nos leva a entender que o período de maior atividade e alerta de P. roquettei é o horário da manhã,
Emilie Snethlage, a senhorinha doutora da ornitologia brasileira
Este indivíduo foi encontrado na cidade de Presidente Juscelino – MG, no dia 30/04/2017, marcando mais um local de ocorrência desta importante espécie da nossa avifauna. |
Ao inventariar 1.117 espécies de aves em anos de incansável labuta, criou um marco histórico para a ornitologia brasileira, sendo ainda hoje referência para o conhecimento ornitológico do país.
É, pela sua história, coragem e dinamismo uma das mais emblemáticas figuras da nossa ciência, nos apresentando a um país de cores, formas e cantos transmutado em penas, bicos, ninhos e diversidade.
O nome científico do cara-dourada é composto pelo nome genérico Phylloscartes: phullon = folha; e de skairö = pular, dançar, e pelo epíteto específico roquettei, uma homenagem prestada por Emilie Snethlage a Edgard Roquete-Pinto, importante comunicador brasileiro que dirigiu o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se conheceram e se tornaram colegas de trabalho e nutriram profundo respeito pela vida e obra um do outro.
Em homenagem a Snethlage a espécie tiriba-do-madeira recebeu o nome científico Pyrrhura snethlageae (Joseph & Bates, 2002).
As ameaças à espécie e a importância das reservas florestais
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P. roquettei alimentando-se. Foto: Rodrigo Quadros |
A área onde Phylloscartes roquettei (Snethlage, 1928) foi encontrado em Curvelo está compreendida na bacia hidrográfica do Rio das Velhas no contexto da região da Lapa do Mosquito, em que ocorre naturalmente o cerrado senso estrito com pontos de mata de galeria, os chamados grotões, e intermitência de outros contextos importantes, como o campo sujo, campo limpo e florestas estacionais deciduais – as chamadas matas secas, clima seco predominante e temperatura média de 28ºC, sendo um novo ponto significativo de ocorrência a ser referenciado, estando em conjunto com os registros realizados na cidade de Corinto, destacando-se essas como áreas de interesse para ações de conservação e preservação. O local exato corresponde a uma mata de galeria fragmentada entre plantações de eucalipto, o que demonstra uma certa diversificação de habitat, já mencionado por Marcelo Alejandro Villegas Vallejos e Leonardo Rafael Deconto em Phylloscartes roquettei em Goiás: notas biológicas, biogeográficas e conservacionistas:
“Embora seja considerada uma espécie com sensibilidade razoável (Parker et al. 1996), já foi registrada em ambientes secundários e florestas fragmentadas (Lopes et al. 2008), além de uma observação isolada explorando momentaneamente uma cultura de algodão (Willis & Oniki 1991), fatos que apontam certa flexibilidade ecológica.”
Abaixo: vegetal onde P. roquettei foi encontrado em Curvelo
Nota Luciano Moreira-Lima na dissertação Aves da Mata Atlântica: riqueza, composição, status, endemismos e conservação, pag414 que:
“Seu tratamento como uma espécie da Mata Atlântica, em oposição ao apontado por outros autores que a consideram a espécie endêmica do cerrado (Lopes 2009), justifica-se pelo fato dela ocorrer nas florestas estacionais associadas ao rio São Francisco que de acordo com os limites nesse trabalho são consideradas como parte da Mata Atlântica”
No trabalho citado acima Luciano Moreira-Lima aponta as florestas estacionais deciduais e semideciduais como áreas de mata atlântica, o que é corroborado pelo Decreto Federal 750/93 que diz “as formações florestais e ecossistemas associados inseridos no domínio Mata Atlântica, com as respectivas delimitações estabelecidas pelo Mapa de Vegetação do Brasil do IBGE: Floresta Ombrófila Densa Atlântica, Floresta Ombrófila Mista, Floresta Ombrófila Aberta, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Estacional Decidual, manguezais, restingas, campos de altitude, brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste”.
De outra forma, em Aves da Pátria da Leari, Pedro C. Lima cita que:
“Como realizações das expedições empreendidas por Snethlage, podemos citar a descrição de três táxons: Xiphocolaptes franciscanus, Phylloscartes roquettei e Knipolegus aterrimus franciscanus. Essas três formas permanecem como endêmicas no bioma da Caatinga.”
Nota-se em Curvelo e região bem claramente a presença de ambas fitofisionomias muitas vezes associadas ao cerrado, contrapondo-se entre si em diversas faixas de transição muito bem delineadas, havendo comumente os chamados grotões. Esses fatores levam a um entendimento de que o cara-dourada possa ocorrer em locais diversos àquele onde foi encontrado no município.
O cara-dourada agradece.
Agradecimentos: Ao ornitólogo e moderador do site Wikiaves Wagner Nogueira pela ajuda nas pesquisas e indicação de fontes de pesquisa; à mestre em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz – RJ Miriam Junghans pela autorização em utilizar o seu trabalho Emília Snethlage (1868-1929): o heroísmo como estratégia de legitimação da ciência como base bibliográfica para esta publicação; aos amigos Maurilio Neto e Antonio Augusto Nery pelas pesquisas de campo e registros fotográficos; ao amigo Paulo Couto pela prestatividade sempre demonstrada ao nos ajudar na identificação das espécies que nos fazem quebrar a cabeça. Ao amigo Marcio Nery pela autorização em utilizar a gravação do cara dourada feita em Curvelo.