Micrastur semitorquatus (Vieillot, 1817) – uma família em Curvelo

O falcão relógio talvez seja uma daquelas aves que, ao serem observadas, alceiam o espirito do passarinheiro a um novo patamar não de elevação, mas de leveza, de gratidão por ter tão somente escolhido a contemplação da natureza como mote para seguir o dia a dia com altivez e entusiasmo. Muitas são as aves que, pelo seu comportamento naturalmente discreto, estão no rol daqueles desafios pessoais. Há muito tempo vinhamos recebendo pistas da presença de Micrastur semitorquatus em Curvelo, não raro um bando de gralhas cancã (Cyanocorax cyanopogon (Wied, 1821)) se anunciava na localidade com imitações do rapinante – e deveras não poucas vezes nos enganaram muitíssimo bem com esse hábito comum aos Corvídeos, diga-se de passagem. No momento do encontro, entretanto, elas não estavam – será que pelo iminente perigo que já sabiam por ali rondar? Saímos cedo, a procura especialmente, dentre outros, do chupa dente (Conopophaga lineata (Wied, 1831)), que até então não encontramos (e demos até uma pausa na procura, diante os fatos que se sucederam). Eis que, de repente, passa por nós saindo de uma cavidade entremeando-se na mata o majestoso milhafre-de-colar, mirando a mais densa população de árvores. Nos posicionamos então, e tão logo começamos a nos preparar para o registro. Iria acontecer? De imediato não importava, estava ali confirmada com observação visual a presença desse misterioso falcão nas terras curvelanas. Mais um daqueles felizes acasos que veem afirmar a expressão “quem procura acha”. Achamos.
O encontro
Alguns dias depois voltamos com os amigos Antônio Augusto Nery (Augustinho) e Tonhão e montamos acampamento em outro ponto um pouco mais afastado da área do primeiro encontro, mais aberto e com melhor campo de visão.
Após montarmos uma pequena tenda com redes camufladas fiz a emissão da vocalização pelo play back e não tardou um indivíduo repetiu os movimentos por entre as árvores da observação anterior. Augustinho confessou que tremia, tamanha a emoção em ver tão incrível espécie das matas, o que dificultava para que pudesse realizar o registro fotográfico. Tonhão pouco falava, apenas mostrava de vez em quando algumas fotos que já havia conseguido. Por fim o incrível rapinante se afastou e nos pusemos a contemplar as fotos e vídeos que cada um havia conseguido.
Após o emocionante registro fomos até uma cavidade na parte baixa do local e, depois de uma breve análise descobrimos penas e ossos em um ponto específico. Maurílio então foi até lá e surpreendeu-se com o que tinha ali: dois ovos manchados em tons de marrom claro e escuro.
O belo falcão relógio – Micrastur semitorquatus (Vieillot, 1817)
Classificação Científica | |
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Reino:
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Animalia
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Filo:
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Chordata
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Classe:
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Aves
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Ordem:
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Falconiformes
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Família
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Falconidae,
Leach, 1820 |
Espécie:
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M. semitorquatus
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Nome Científico
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Micrastur semitorquatus
(Vieillot, 1817) |
Em inglês
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Collared Forest-Falcon
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IUCN 3.1
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LC – Pouco Preocupante |
A espécie apresenta variações na plumagem (polimorfismo), sendo a mais comum aquela em que os indivíduos tem a parte superior da cabeça e parte superior do pescoço negros, partes inferiores e região ventral branca com um colar na garganta da mesma cor e uma faixa negra que parte de ambos os lados da cabeça e afinam-se abruptamente não chegando contudo a se encontrar. Espécie rabilonga com quatro listas brancas distantes uma da outra. Pernas amarelas e longas. Existem ainda indivíduos cuja coloração apresenta-se creme ou escura.
O nome comum da espécie se deve a pontualidade e constância com que a sua vocalização característica “AO” ecoa nas matas onde habita, mais comumente na alvorada e no entardecer. De acordo com o Wikiaves o seu nome científico quer dizer “Pequeno milhafre com pequeno colar”. A espécie tem como autoridade descritiva o naturalista e ornitólogo francês Louis Pierre Vieillot cuja abreviatura padrão Vieillot é utilizada para determinar os taxa por ele descritos. Entre as obras de Vieillot encontram-se Analyse d’une nouvelle ornithologie élémentaire e Histoire naturelle des oiseaux de l’Amerique Septentrionale : contenant un grand nombre d’especes decrites ou figurees pour la premiere fois.
Consta que M. semitorquatus nidifica preferencialmente em cavidades arbóreas ou cavernícolas, porém, publicações como Descrição da nidificação de Micrastur semitorquatus (Falconiformes: Falconidae) no interior de uma habitação rural, no Município de Sete Lagoas -MG. têm demonstrado certa adaptabilidade da espécie ao nidificar em edificações urbanas. Esse comportamento pode estar relacionado com a perda gradual de seu habitat através do desmatamento para a monocultura ou pecuária bem como a cada vez mais comum aproximação das instalações humanas às áreas de ocorrência, as matas que comportam arborização densa.
A família e seus hábitos alimentares
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Ovos de M. semitorquatus. |
Na observação posterior, no dia 26/08/2017 esse ovo já se encontrava com o aspecto firme como do outro. A nidificação ocorreu no fim do inverno no hemisfério sul – na região historicamente esse período é marcado por forte seca mas com a iminência da chegada das chuvas e consequente aumento na cobertura vegetal, o que leva a supor* que, pelos hábitos florestais da espécie, os filhotes ao saírem do ninho já irão encontrar um ambiente mais propício para que possam passar despercebidos. O ninho se encontra em uma cavidade acima do solo na parte externa de uma caverna – que não será divulgado de qual se trata até a próxima temporada de choca, quando há a possibilidade de a espécie voltar a nidificar no local. Esse cuidado se explica devido a existência na cidade de Curvelo e região de grupos de falcoeiros que não se privam de retirar os filhotes dos ninhos e, de alguma maneira escusa, conseguir registrá-los como sendo adquiridos de procedência legal. Chegou ao nosso conhecimento fato que corrobora o nosso cuidado acontecido com a retirada de um filhote de falcão-de-coleira (Falco femoralis (Temminck, 1822)) por um desses colecionadores de aves. Nós, como observadores, nos limitamos apenas a observar e documentar da maneira menos prejudicial possível para a espécie e temos como obrigação manter o equilíbrio do ambiente não interferindo ou deixando que interfiram em seus mecanismos.
A cavidade escolhida possui um leve declive onde os ovos foram depositados junto a parede e os ninhegos, nas primeiras semanas após eclodidos, utilizavam como área preferencial de repouso. Muitas outras cavidades interligam-se a essa principal e não raras vezes foi possível verificar a utilização delas pelo adulto que estava no ninho no momento em questão.
O ninho, de uma forma geral, é forrado quase que exclusivamente dos ossos e das penas das presas abatidas. Não foi possível determinar se a pele, principalmente de mamíferos, era reutilizada como forragem. Embora a quantidade expressiva de ossos e penas o local não apresenta odor, toda a matéria orgânica que poderia vir a contaminar o ambiente – como restos de carne, vísceras, sangue, etc – não se encontram presentes, o que leva a *especulação de que os adultos, de alguma forma que não foi possível observar, fazem a limpeza e retirada dessas partes da presa (ou mesmo podem ser utilizadas como alimento).
Os ossos, que em uma primeira vista aparentemente estão amontoados, encontram-se em sua maioria quebrados em pedaços menores e misturados às penas. Alguns pedaços maiores foram disponibilizados de forma como a servir de escora aos ovos, evitando dessa maneira possível deslocamento dos mesmos em situações, por exemplo, como a chegada de um dos adultos com uma presa de porte maior. As carcaças frescas sempre eram depositadas distante dos ovos, mas na mesma cavidade e nunca próximas do ovo que não vingou – perto dele eram depositados a maioria dos restos mortais das presas utilizados na confecção geral do ninho (o excedente de penas e ossos). As carcaças frescas ficavam geralmente separadas no chão da cavidade longe do acumulado, o que *demonstra um cuidado por parte dos adultos quanto a não contaminação das mesmas por possíveis micro-organismos constantes naquele espaço. De uma semana a outra não era mais possível identificar partes da carcaça observada anteriormente: ou havia outra carcaça fresca ou mais acumulo de ossos e penas. Mau cheiro foi percebido apenas no dia 02/09/2017, quando os filhotes já ficavam mais sozinhos no ninho, fato não notado nas observações posteriores.
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Jovem M. semitorquatus e ao seu lado restos de uma serpente, possivelmente Philodryas olfersii (Lichtenstein, 1823) |
Em praticamente todas as ocasiões os adultos demonstraram estar perto do ninho, ou vocalizando ou rondando as imediações; no entanto, após a postura dos ovos, sempre apenas um deles voltava para a área e pouquíssimas vezes era efetivamente observado.
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Ovo que não vingou encontrado no ninho. |
A esse fato supomos que estavam os dois ao longo do dia caçando e, na oportunidade de captura de alguma presa ela era levada imediatamente para o local. Ao longo das observações ficou demonstrado que as presas eram de espécies diversas, sendo que em algumas oportunidades foi possível analisar partes das mesmas ainda frescas. Identificamos a pata de uma ave, possivelmente um jovem jacupemba (Penelope superciliaris (Temminck, 1815)) que vimos na região em data anterior; possivelmente um inhambu-chororó (Crypturellus parvirostris (Wagler, 1827)), de uma serpente não identificada, de um mamífero, possivelmente um roedor da família Leporídae – tapiti (Sylvilagus brasiliensis (L.))?. No ninho, analisando-se os restos mortais, foi possível identificar o crânio de um roedor de pequeno porte e muitas estruturas ósseas comuns às aves. Outra serpente foi encontrada sem a cabeça no dia 15/11/2017, possivelmente uma Philodryas olfersii (Lichtenstein, 1823).
Após a eclosão dos ovos na semana entre dos dias 17/09/2017 e 24/09/2017, a presença dos adultos no ninho especificamente se tornou menor, embora sempre um deles demonstrasse estar próximo, ou pela vocalização, ou efetuando rápidas entradas na cavidade ou ficando entre as árvores nos observando. Os filhotes permaneciam praticamente no mesmo local onde havia sido a postura e, ao perceberem o menor movimento se punham a vocalizar como que a chamar pelos pais, comportamento não mais notado à partir do dia 07/10/2017, duas semanas após a choca. A plumagem era de uma coloração toda branca.
No dia 14/10/2017 eles já se locomoviam com bastante dificuldade por uma certa área do ninho próxima ao ponto de postura e se aproximavam de pontos onde percebiam movimentação. A plumagem ainda permanecia toda branca.
No dia 21/10/2017 já apresentavam uma coloração escura nas asas e permaneceram arredios, não se movimentando na área do ninho diante a nossa presença e observando os nossos movimentos.
No dia 29/10/2017 os ninhegos já apresentavam bastante mudança na plumagem com diversas manchas escuras pelo corpo. Permaneceram arredios, não se movimentando na área do ninho diante a nossa presença e observando os nossos movimentos. Um dos adultos saiu do ninho e pousou rápido a nossa frente, logo se embrenhou na mata e não foi mais observado.
No dia 05/11/2017 os ninhegos já se locomoviam com certa habilidade no ninho, sendo que um deles se manteve o tempo todo de nossa permanência no local em pé, nos observando atentamente. Já apresentavam a plumagem bem característica na mudança de filhote para jovem. Um dos adultos vocalizou e se locomoveu entre as árvores do entorno do ninho, não possibilitando contudo uma melhor visualização.
No dia 15/11/2017 tivemos dificuldades em observá-los, o que nos levou a acreditar que eles tinham saído do ninho. Com a região dorsal e asas bastante enegrecidos um deles deixava mostrar apenas parte do corpo por entre uma fresta enquanto o outro estava totalmente escondido nesse buraco.
No dia 19/11/2017 mantiveram-se quietos no ninho, um deles em pé enquanto o outro permaneceu o tempo todo deitado. Naquele em pé foi possível perceber na região ventral que a coloração de jovem dava lugar a uma suave coloração esbranquiçada característica do adulto. Nessa altura me perguntei se eles ensaiavam voos pelo perímetro do ninho, já que em nenhum momento de todas as nossas visitas (embora o nosso tempo de permanecia no local sempre foi de curto prazo) não observamos outro comportamento senão o de procurar se manter imóvel nos olhando atentamente ou de posição de defesa.
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Detalhe geral do ninho |
Entre os dias 20/11/2017 e 15/12/2017 não foi possível ir ao local devido as chuvas que impossibilitaram o acesso a área do ninho. Como na última visita os ninhegos já estavam bem formados, com plumagem já assemelhado-se à dos adultos e que já decorrera 26 dias dessa observação concluímos que os mesmos já tenham deixado o ninho. Demos portanto como concluído o nosso processo de observação dessa família de Micrastur semitorquatus.
Entre o dia de confirmação da existência do ninho e dos ovos – 12/08/2017 – e o dia 20/11/2017, último onde não mais observamos os filhotes decorreram 101 dias. Somando-se a esses dias os dias que ficamos impossibilitados de ir ao local – de 20/11/2017 a 15/12/2017 (26 dias) temos 127 dias. De acordo com o Wikiaves, onde consta que os filhotes ficam no ninho no máximo de 46 a 50 dias, pode-se concluir assim que no dia 15/12/2017 não se encontravam mais no ninho e estavam independentes dos pais.
Em todas as observações podemos notar uma relação harmônica entre os filhotes. Em Aves de rapina do Brasil Willian Menq cita o caso ocorrido no Pantanal em que um filhote nascido em cativeiro foi introduzido em um ninho natural e aceito pelos adultos.
*As informações com o sinal de asterisco são anotações de observação pessoal e, assim, precisam de análise científica mais apurada para que possam ser confirmadas.
Abaixo a linha do tempo dos filhotes do dia do encontro do ninho 12/08/2017 até o dia em que foi possível visitar o local pela última vez 18/11/2017:
Acompanhar a família Micrastur semitorquatus foi uma das grandes experiências que nós, observadores de Curvelo, já tivemos. Uma ave misteriosa e naturalmente difícil de ser avistada nos brindando com as suas esquivas e principalmente o comportamento inato dos ninhegos que, mesmo muito novos demonstravam o comportamento muito próximo daquele observado nos adultos.
Agradecimentos especiais a Antônio Augusto Nery (Augustinho), Maurilio Neto e Tonhão Costa, o nosso esforço conjunto em manter vigilância e segredo durante os meses de observação e o respeito pelas aves foi preponderante para que as aves não sofressem nas mãos de traficantes. Agradeço em meu nome e em nome dos citados acima a todos os passarinheiros que vieram a Curvelo, registraram os ninhegos (e nas raras oportunidades os adultos) pela cumplicidade conosco ao manter sigilo sobre o ninho e sua localidade.
Muito legal. Parabéns a todos que participaram desse trabalho maravilhoso de registro.
Obrigado.