O fantasma do cânion

Gonzagão ecoou com o seu Pagode Russo no aparelho celular – Troada do cão essa bosta de toque que você usa, reverbera no cerúmen bicho! –Niquitibio era daqueles resmungões doutos, dado a constantes rompantes de mau humor mesclados a palavras de baixa propriedade para qualquer momento e anedotas de sarcasmo duvidoso, mas uma boa pessoa.
Chegamos à região do Morro do Camilinho aonde para quem vai sentido Gouveia a bela formação rochosa em forma de corcovas se ergue espetacular à frente. À esquerda os moinhos de vento que não surpreendem terem se transformado em armações de aço e pás cortadas diuturnamente pelo vento algoz sem gerar força para uma lâmpada sequer. Quixotesco elefante branco. Ainda era noite e as pás fantasmagóricas estavam absurdamente bem visíveis assim como o Camilinho – se escreve assim mesmo, está na beira da estrada em letras oficiais. Conferi no celular se as vocalizações de todas as aves de Minas que tinham me tomando um tempo enorme para conseguir, pedir, baixar e gravar estavam em ordem.
Lavamos as mãos nas águas daquele belo riacho e seguimos viagem. Naquele ponto matas densas intercalam-se ao campo limpo e ao campo sujo, árvores enviesadas pelo vento são comuns nos topos e não raro seixos de dimensões variáveis se expõem na paisagem. Adiante os paredões desnudados por milhões de anos de intempéries, as vertentes esculpidas pelo suave e inevitável afago do tempo. De repente, saído de uma área entre paredões como um anfiteatro natural um sujeito maltrapilho, barbas longas de anos por fazer e olhos em brasa pulou diante o carro. Niquitibio juntou no freio _ Olha que botão da marafia, vou descer o cacete nele!_ segurei o meu amigo para que não agisse pela neurastenia, desci do veículo nesse ínterim enquanto o homem abriu os braços bradando: _ Não vai pro cânion, não vai pro cânon! _ de impulso abaixei entre a roda dianteira e o barranco da beira, receio do que podia me surpreender de lá. O homem continuou _ Cês é tudo doido, o cânion tá mardicioado, o pote de ouro tá marrado, tá marrado pelas mão do coroné! O coroné vai jogar a pedra nocês! _ Dito isso correu para o mato quebrando galhada no peito. Entrei no carro novamente e Niquitibio acelerou rindo daquilo tudo _ Viu o que o tarado fez? Safado, deve tá indo cagar! _ e gargalhava na mesma altivez com que o doido gritava. Eu ri sem graça e, para o nosso ainda bem a porteira do cânion despontou após uma área íngreme de pequenos arbustos e muitas Melastomatacea. _ Esse é o paraíso dessa família_ Niquitibio disse, enquanto fotografava com uma das mãos a, nas palavras dele, Miconia ferruginea.
_ O menor deles vem por baixo, faz que vai atacar e some. Tá vendo lá bem mais em cima, é o maior. As galinhas logo vão voltar ao seu ciscar habitual, aí o grande desce num mergulho de dar medo, certeiro: sempre leva uma…
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Pleroma aemula (DC.) P.J.F. Guim., A.L.F. Oliveira & R |
E naquele momento até eu deveras tinha me esquecido da passarinhada que é o motivo que me leva a desbravar os Gerais. De repente um grito! Todos olhamos em direção a uma reentrância de rochas ornamentadas por pendentes bromélias cor de rosa. Logo reconheci ser aquele homem maltrapilho que da nossa chegada tinha atravessado na frente do carro. Gritou mais uma vez emendando com um sonoro “Saiam do cânion, saiam das terras do coroné!!! O ouro! O ouro!” e foi nessa toada até ser alvejado nas costas por um safanão desferido por Urutago. _ Gritaiada disgraça! _ disse, enquanto o homem se reorganizava em tosses e resmungos inverossímeis.
Descia com dificuldade, pois as pedras me causavam algum desequilibrio quando Ibijaú avançou sobre mim. Assim como a primeira pepita fomos as demais e eu pararmos na areia úmida. O doido se segurava numa rocha dependurado e, pendulando-se conseguiu recompor-se e desceu ligeiro. Apanhou umas das pedras douradas enquanto eu me apoderei novamente de outras duas. Logo percebi o que tinha em mãos: esfreguei uma pepita na outra e só não saíram mais faíscas porque partes de ambas estavam molhadas. Para sanar qualquer dúvida expus uma delas ao sol e o brilho foi tamanho que ardeu os meus olhos. Saquei um pequeno canivete e passei a ponta naquela menos vistosa, o metal não causou sequer um arranhão no seixo. Sorri comigo e gritei: _ Conhecem o ouro de tolo? _ Logo senti mais um safanão, era Ibijaú que tomava de mim definitivamente o falso ouro e correu léguas sumindo por entre os paredões. Niquitibio ria ainda mais frouxo enquanto gritava em tom de zombaria: _ Era pirita, era pirita! _ eu levei a outra pedra para Urutagua que, toda festiva, mascava mais goiabinhas e dizia para os murundus ser a mais rica ave daqueles paredões. Depois de tantos acontecimentos singulares tomamos o caminho de volta para a casa verde sobre onde de vez em quando voejam os taperuçus.
Assim demos as costas para as montanhas imensuráveis e o chão e suas cores escuras e seres de adaptabilidade incrível. Os taperuçus a muito deixaram de voar e o sol queimava. Voltamos, portanto e, cada um em seu próprio interior buscou um lugar de repouso. Recostei sob um exuberante jatobazeiro e as suas graciosas flores alvas a espera das mamangavas e morcegos. O corpo doía um pouco e ninguém estava próximo, foi quando adormeci. Acordei com certeza horas depois sentindo um frio estranho que pelejava em entranhar pelos poros. Levantei num rompante e busquei pela gandola. Anoitecia e algumas estrelas já eram possíveis no firmamento. Senti que precisava de um banho, mas percebi que, pelo reflexo de sombras no chão que vinha da casa esverdeada, os meus amigos estavam reunidos. Avancei lentamente enquanto um bacurau pedia insistente tabaco bom, tabaco bom, bom e o joão-corta-pau não parava de falar o seu nome. Entrei pela grande porta de correr no instante em que Niquitibio, Griseu e Urutago sorviam cada um uma talagada generosa de cachaça. O curiango gritava lá fora o seu nome: Curiango! Curiango! _ Onde posso tomar um banho, estou exausto…_ perguntei no que Niquitibio respondeu:
Eis que do cânion um som muito familiar ecoou. Sorri comigo, pois acabava de confirmar as suspeitas que a muito trazia comigo, desde a última vez que estivemos nessas terras de pedras e vida afeita à brutalidade das intempéries e escassez de recursos. Tomado de confiança e ciente que não havia nenhum perigo me dirigi ao local. Toquei com o celular aquela voz e, em pouco tempo percebi o vulto em minha direção. Sobrevoou sobre mim e se deixou ali em um galho alto de uma colher-de-vaqueiro. Retornei para dizer aos meus companheiros a minha descoberta quando um grito de dor, sofrido e arrepiante tomou toda a noite. Estaquei de pronto, pálido já, sem reação por um segundo infinito. Tomei um choque quando uma mão se pôs no meu ombro. _ Que caralho é esse véim?! _ Era Niquitibio que revela também um assustado olhar e tremuras de dedos. Logo uma correria se fez em nossa direção, vindo não da estrada, mas do entorno, à esquerda, subindo galopante o leve e sequencial altiplano de um breve vale. _ Pronto, agora fudeu!!!_ Corremos desenfreados na direção contrária, mas aqueles passos eram absurdos, como se encontrassem metros em um simples elevar de pés. Passadas duras, disparatadas, deveras socos constantes na terra e cada vez mais próximas. Um atropelado e ofegante furor de ventas já era possível e nada havia mais a fazer. Logo a criatura se pronunciou em nossa frente. _ Cês ouviram, que trem doido! _ Era Urutago, ainda mais tomado de arrepios. _ A besta pegou o pai! _ disse, enquanto outro grito tomou a noite. Dessa vez corremos na direção, numa eletrizante mistura de curiosidade, pavor e coragem. Encontramos Ayaymama que, aos prantos se jogou nos braços de Urutago.
Ayaymama a esta altura cuidava dos ferimentos em Ibijaú. Urutago socou o estômago de Griseu que se descompôs de vez. Todos estavam surpresos, estupefatos até, menos eu. Não é de se espantar a maldade vinda de um ser humano. Ali perto o canto cheio de melancolia ecoou novamente. _ E essa é a responsável pelo barulho triste que vem do cânion, a mãe-da-lua! _ Apontei a lanterna para o galho e seus olhos brilharam como um farol. Griseu se levantou e também observou, maravilhado, a misteriosa e bela criatura.
Bem legal!